terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Às sextas-feiras, naquele carro



Foram apenas alguns segundos da entrada do prédio até ao carro, mas esse curto espaço de tempo serviu para congelar as minhas mãos. Está vento, aquele vento gélido que deixa a ponta do nariz vermelha e em risco de cair. Entro no carro e aquela música ambiente imprescindível em qualquer viagem que eu faça já toca. Sorrio e estico o meu corpo para a cumprimentar. Dou-lhe dois beijinhos: “Tens que cortar um bocadinho essa barba, não?”. Ele gargalha e arranca com o carro. Passo rápido os olhos pelo retrovisor e vejo aquele prédio cada vez mais distante.
Estaria a mentir se dissesse que, depois de três anos, já não sinto esta cidade como minha. Também aquelas paredes brancas daquele apartamento já me fazem sentir acolhida, mas jamais como a casa para onde me dirijo. Pessoas, sirenes, buzinas de carro, camiões do lixo, o toque de entrada da escola primária que eu invejo da varanda do meu quarto naquele quarto andar, agitação, vida. É a tudo isto e muito mais que esta cidade me soa. Mas aos fins-de-semana, a calmaria daquelas planícies rouba-me facilmente a esta agitação que acelera a minha semana.
O nosso riso faz eco naquele carro todas as sextas-feiras, umas vezes porque os seus movimentos desengonçados andam de mãos dadas com as notas musicais e vozes que o rádio nos apresenta, outras porque as palavras usadas para contarmos alguma coisa que nos aconteceu durante a semana parecem penas a fazerem cócegas nos nossos ouvidos. “Quando é que te decides a tirar a carta?”, pergunta ele. Na minha cabeça começa a martelar a ideia de que “Ele tem razão, já está mais do que na hora”. Mas de que vale chocar de frente com as verdades se também sabes que não é fácil gerir as páginas datadas do teu caderno de forma a saber fazer uma conjugação harmoniosa das peças desse teu armário de papel?



A bipolaridade do tempo


Enquanto a velocidade do carro esbate as imagens que estão para lá dos vidros, permito aos meus pensamentos aguçarem as saudades. As saudades de adormecer no sofá e acordar na minha cama com aquelas cobertas que aconchegam a preguiça típica das manhãs de domingo. Saudades de os ter comigo toda a semana e não apenas durante parte dela. Saudades de tantas outras coisas que agora são apenas memórias distantes, mas ao mesmo tempo tão presentes. Na saudade descobrimos que pedaços de nós já ficaram para trás. E descobrimos, na saudade, uma coisa estranha: desejamos encontrar, no futuro, aquilo que já experimentamos como alegria, no passado. Só podemos amar o que um dia já tivemos.
Paro! E não, não foi por causa do semáforo que, desiludido com as polémicas, que assolam o seu Sporting ultimamente decidiu mudar para o Benfica na utópica esperança de ter feito uma boa escolha. Paro com os pensamentos nostálgicos, simplesmente porque sei que o passado já está para trás como aquele prédio que há pouco vi pelo retrovisor. A minha atenção captou aquela mulher que corre apressada no passeio. Aquela que na correria da vida se deixou desprezar pelo tempo. O que será que está a necessitar tanto dela naquele momento ao ponto de não a deixar sequer olhar para o que se passa ao seu redor? O que será tão urgente que não lhe permite parar e observar calmamente aquele casal de idosos sentados no banco do parque? Sim, aquelas duas pessoas na casa dos oitenta anos que, com um sorriso nos olhos, ainda fazem juras de amor eterno. Que histórias devem esconder aqueles cabelos brancos? Será que foi um amor de toda uma vida? Quem se apaixonou primeiro? Têm filhos? Quantos? À imaginação que habita em mim agrada-lhe o facto de eu ter criado em pouco mais do que uns segundos toda uma história de vida para aquelas duas personagens que no teatro dos meus olhos são agora protagonistas.
Li há uns tempos um texto que a Marta D’Orey publicou no seu blogue e identifiquei-me totalmente com as palavras que ela utilizou para descrever o que sente relativamente à passagem do tempo, nomeadamente quando é na escola que “gastamos” a maior parte dele. Na ingenuidade da infância vemos o tempo que falta para sermos crescidos como uma eternidade, o que não sabemos é que os dias se atropelam uns aos outros. Recordo-me, como se fosse hoje, de não me serem suficientes as duas mãos, e os respectivos dedos, para  contar os anos, e protestar, com um torcer do nariz e um revirar de olhos, que a escola nunca mais tinha fim, que ia ter de aguentar, e aguentar, e aguentar mais uns quantos anos, até ficar efectivamente marreca por tantas vezes andar com mochilas maiores do que eu, e de as minhas mãos ficar com uma espécie de cãibras por tanto segurarem aquele lápis que utilizava para terminar os trabalhos que supostamente já deveria ter feito mas que só mereceram a minha atenção instantes antes de soar a campainha que marcava o início de uma aula onde o relógio parecia ter mais preguiça do que eu numa segunda-feira de aulas.

Hoje, que conto em meses o tempo que me falta até a escola acabar, sei que o tempo é como aquela senhora e também vive às pressas. Vive tão às pressas que faz com que nessa eternidade que em tempos julgamos ser a vida, deixemos pessoas por conhecer, sítios por observar, experiências por viver e memórias por criar.

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